A estação Bowery, silenciosa há décadas no subterrâneo do Lower East Side, voltou a respirar na noite de 2 de dezembro de 2025. Ali, entre trilhos desativados e paredes que testemunharam gerações de passageiros anônimos, Matthieu Blazy apresentou seu primeiro desfile Métiers d’Art para a Chanel. O diretor artístico, em sua segunda coleção desde que assumiu a maison, recuperou o espírito de Nova York para construir uma narrativa que alterna fantasia e realidade com uma precisão quase cinematográfica.
A inspiração nasceu de um episódio vivido por Gabrielle Chanel em 1931, quando fez uma parada em Nova York durante sua viagem a Hollywood. Naquela visita, a criadora descobriu cópias de seus próprios modelos na loja de descontos S Klein, em Union Square. Em vez de se incomodar, viu ali um sinal de que seu estilo havia viajado mais longe do que imaginava. Para Blazy, esse momento simboliza a energia que a fundadora encontrava nos lugares que a interpretavam, reinventavam e, de certa forma, legitimavam sua estética. Ele recuperou esse espírito urbano para construir uma coleção que dialoga com o cotidiano da metrópole e com o savoir-faire refinado que sustenta a Chanel.

A escolha da estação Bowery como cenário renovou a discussão sobre como a moda ocupa espaços públicos. O ambiente foi cuidadosamente restaurado para o desfile, limpo da rotina áspera do metrô, mas preservando sua arquitetura original. A chegada de um trem deu início à apresentação, enquanto as modelos surgiam como se fossem personagens reais, capturadas entre deslocamentos, compromissos, festas e instantes de anonimato. Margaret Qualley e A$AP Rocky assistiram à cena após participarem do curta-metragem dirigido por Michel Gondry para o teaser da coleção, no qual interpretam amantes nova-iorquinos vivendo episódios surreais pela cidade.
Blazy ressaltou que o metrô de Nova York pertence a todos e que nele se encontram estudantes, executivos, artistas, turistas, jovens e veteranos. Para ele, trata-se de um palco involuntário onde cada pessoa interpreta sua própria história. A coleção recebeu essa multiplicidade de personagens com naturalidade, recuperando o mesmo olhar que o designer já havia aplicado em sua trilogia de desfiles para a Bottega Veneta, quando buscou inspiração nos rituais diários das ruas italianas.

No Métiers d’Art 2026, Blazy elaborou uma galeria de arquétipos que atravessam cem anos de referências culturais. Socialites, super-heroínas, adolescentes em descoberta, mulheres profissionais, showgirls, mães apressadas, senhoras elegantes e jovens em plena experimentação formaram um mosaico que reflete tanto a exuberância quanto a simplicidade da vida urbana. Essa pluralidade ganhou corpo em peças que pareciam contar pequenas narrativas a cada passagem.
Entre elas, surgiram interpretações lúdicas do imaginário pop, como o suéter com o símbolo da Chanel reinterpretado como o logotipo do Superman, revelando-se sob uma camisa entreaberta. O tweed, material emblemático da maison, surgiu transformado em animal print, tecido à mão pelos ateliês Lesage. Outro destaque foi o chamado “lingerie denim”, um trompe-l’œil construído em seda ultraleve, bordado com constelações que evocavam universos íntimos e secretos.

O desfile transitou com naturalidade entre atmosferas de glamour e simplicidade, com saias amplas pintadas à mão com tulipas, sapatos revestidos de plumas, chapéus em rede e tailleurs contornados por shearling. Na outra ponta do espectro estético, a coleção abriu com jeans de corte clássico, um suéter com zíper e os icônicos sapatos bicolores da casa, reafirmando que o cotidiano também merece ser tratado com rigor artesanal.
Por toda a plataforma, pequenos detalhes revelavam a precisão dos métiers da Chanel. Joaninhas bordadas em miniatura surgiam discretamente em casacos, enquanto as joias Goossens assumiam formas de cubos de gelo ou beija-flores. Os slingbacks da Massaro, baseados em um modelo concebido pela própria Gabrielle Chanel, reapareceram em couro macio ou shearling estampado, quase leves o suficiente para desafiar a realidade material.

Após o desfile, Blazy descreveu seu propósito com clareza. Ele desejava oferecer algo belo, prazeroso e livre, um sentimento que já havia guiado sua estreia na maison. Seu segundo capítulo na Chanel revelou um designer mais confiante, seguro ao dialogar com a história da marca sem se permitir ser engolido por ela. O próprio cenário reforçava essa intenção: nada ali seguia uma linha única. Havia imprevisto, movimento e espontaneidade, como se a vida real tivesse sido discretamente editada para caber em uma coreografia de moda.
Blazy afirmou gostar da ideia de criar um desfile em que tudo se desenrola fora da linearidade, refletindo o que cada pessoa encontra ao sair de casa pela manhã sem saber o que a espera na próxima esquina. A coleção trouxe esse espírito com elegância e leveza, apresentando uma Chanel em plena sintonia com a cidade que tantas vezes a reinterpretou. O metrô, com sua mistura democrática de histórias e personagens, tornou-se um espelho poético para uma maison que continua a dialogar com o mundo sem perder sua identidade.