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O Agente Secreto propõe um olhar íntimo sobre o Brasil dos anos 1970

Ambientado em 1977, em pleno período da ditadura militar brasileira, O Agente Secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho, surge como uma obra que ultrapassa os limites do thriller político para se afirmar como um exercício profundo de memória, silêncio e tensão cotidiana. Protagonizado por Wagner Moura, o longa reconstrói um Brasil marcado pela vigilância, pelo medo difuso e por uma violência que se insinua mais nos gestos contidos do que nos confrontos explícitos.

A narrativa acompanha Armando, um homem que chega a Recife dirigindo um antigo Fusca, em busca do filho que vive sob os cuidados do avô materno. Viúvo, solitário e permanentemente atento ao ambiente ao redor, ele se refugia em um apartamento que abriga exilados políticos, comandado pela figura intensa e quase mítica de Dona Sebastiana. A cidade, filmada com beleza solar, nunca se apresenta como cenário neutro. As ruas iluminadas carregam uma ameaça latente, um estado de alerta permanente que define a experiência de viver sob um regime de exceção.

Kleber Mendonça Filho, que construiu uma filmografia marcada pela observação minuciosa da sociedade brasileira, aprofunda aqui seu interesse pelas relações entre espaço, poder e memória. Assim como em O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau, o diretor transforma o cotidiano em território político. Em O Agente Secreto, a ditadura não aparece apenas como pano de fundo histórico, mas como uma presença invisível que molda comportamentos, silencia vozes e redefine afetos.

Wagner Moura entrega uma atuação de rara contenção. Longe de qualquer heroísmo tradicional, seu Armando é um homem comum, perseguido não por atos espetaculares, mas por sustentar valores que, naquele contexto, se tornam perigosos. A performance é construída a partir de olhares, pausas e pequenos movimentos, revelando um personagem que observa mais do que age, que calcula cada gesto como quem sabe que qualquer deslize pode ser fatal. O medo nunca explode, mas permanece ali, constante, quase palpável.

Essa escolha estética dialoga diretamente com a proposta do filme. Não há pressa em explicar, nem em conduzir o espectador pela mão. A narrativa se desenvolve de forma paciente, exigindo atenção e envolvimento. As informações surgem aos poucos, fragmentadas, como a própria experiência de viver sob censura, quando nada é dito de forma direta e tudo precisa ser intuído. O resultado é um cinema que confia na inteligência do público e na força do não dito.

Mais do que reconstruir um período histórico, O Agente Secreto propõe uma reflexão sobre a memória coletiva brasileira. Ao contrário de outros países da América Latina, o Brasil optou por uma transição marcada pela anistia ampla, que apagou responsabilidades e impediu um enfrentamento direto com os crimes da ditadura. O filme se insere, portanto, em um movimento cultural que busca devolver ao país uma memória que foi deliberadamente silenciada, lembrando que o esquecimento também é uma forma de violência.

A relação entre passado e presente atravessa toda a obra, mesmo sem ser explicitada. Embora ambientado nos anos 1970, o filme dialoga com as experiências recentes vividas por artistas e intelectuais durante os anos de autoritarismo simbólico e perseguição cultural no Brasil contemporâneo. Essa camada adicional confere ao longa uma ressonância atual, transformando-o em um comentário sutil sobre os ciclos de intolerância que insistem em se repetir.

Visualmente, o filme se ancora em referências claras ao cinema dos anos 1970, com uso de lentes e movimentos de câmera que evocam uma estética analógica, quase tátil. Os figurinos, os carros e os interiores não funcionam apenas como elementos de época, mas como extensões emocionais dos personagens. Tudo contribui para criar uma sensação de imersão, como se o espectador fosse transportado para um tempo que, embora passado, ainda reverbera no presente.

O Agente Secreto se consolida, assim, como uma das obras mais maduras e contundentes do cinema brasileiro recente. Ao recusar o espetáculo fácil e apostar na delicadeza, na observação e na construção de atmosfera, Kleber Mendonça Filho e Wagner Moura entregam um filme que permanece na memória muito depois dos créditos finais. Não apenas como um relato sobre a ditadura, mas como um lembrete urgente de que a democracia exige vigilância constante e que a arte segue sendo um dos seus instrumentos mais potentes de preservação.

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