Na 60ª edição da São Paulo Fashion Week, Rafael Caetano volta a transformar a passarela em narrativa. Fiel à sua proposta de dialogar com grandes nomes da cultura brasileira, o estilista presta agora uma homenagem ao escritor e filósofo Antonio Cicero, figura que marcou gerações com sua poesia existencialista e musical.


A escolha carrega um peso emocional. A morte de Antonio, em outubro de 2024, após optar pelo suicídio assistido na Suíça em decorrência de um diagnóstico de Alzheimer, comoveu profundamente Caetano. A relação do designer com o autor já vinha de longa data: em 2018, ele havia criado uma coleção inspirada em Novas Famílias, álbum de Marina Lima, irmã e parceira artística de Cicero. A sintonia estética e afetiva entre ambos se renova agora, em um desfile que vai além da homenagem e se torna reflexão sobre memória, sensibilidade e passagem do tempo.


O contexto também favoreceu o tributo. A recente exposição Fullgás – Artes visuais e anos 1980 no Brasil, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte, e o lançamento da antologia Fullgás: poesia reunida pela Companhia das Letras reacenderam o interesse pela obra do escritor carioca. Com a bênção do figurinista Marcelo Pies, viúvo de Antonio, Rafael deu início à criação de uma coleção que traduz o lirismo do poeta em forma, textura e movimento.


A estética é um ensaio sobre o equilíbrio entre estrutura e fluidez. A alfaiataria surge em tons sóbrios, inspirada nos anos 1980, década que marcou o auge da produção intelectual e artística de Cicero, com ombreiras, cortes geométricos e sutis desconstruções. Em um dos paletós, a lapela se prolonga e se enrola pelo torso como metáfora do pensamento contínuo do autor. Jaquetas têm barras que imitam o cós das calças, em gestos que questionam convenções formais e evocam liberdade criativa.


A leveza, porém, é o que conduz o olhar. Tecidos naturais como linho, algodão e seda compõem camisas drapeadas, laços e calças amplas que se movem com o corpo, refletindo a poesia urbana e etérea de Antonio Cicero. Ao som de Mesmo que Seja Eu (1984), a trilha sonora reforça a atmosfera de delicadeza melancólica que envolve o desfile.


Mais do que vestir uma homenagem, Rafael Caetano parece costurar um diálogo entre moda e filosofia, corpo e palavra. Em cada dobra de tecido, há um convite à contemplação, um lembrete de que a beleza, como a vida, é feita de presenças sutis, de gestos que permanecem mesmo depois do silêncio.